diários border dia 01

Dandara de Morais
4 min readJun 10, 2021

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ainda não acordei. repito, já levantei, mas meu pensamento continua perdido com meu corpo no reino dos sonhos. alguém levou minha alma até o meio do sertão e a deixou lá. estive despertando cedo e com vontade de se alisar, mas hoje ainda não acordei.

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abri os olhos três vezes, falei dormindo, mas ainda não despertei. era por volta de nove e meia quando ele me trouxe café na cama, e eu já sabia que estava com fome, mas meu primeiro reflexo foi dizer “não quero acordar” apesar da barriga roncar e no sertão quererem me matar e eu perder todos os transportes que me tirariam daquele lugar arisco. acordei, mas a minha alma não estava lá. uma das vozes me gritava: “fica na cama, não adianta de nada se levantar”, mas eu comi, dei bom dia, e comecei a me distrair com vídeos bestas no tik tok.

ontem eu estava bem. tão bem que pensei “vou falar com luciana pra ela diminuir minha medicação. tá bom de tomar tanto remédio já”. além de fuder meu fígado, fode minha conta bancária que chora desesperada sem saber o que vai acontecer com ela nos próximos meses. e eu choro junto, me desgasto. tomo banho, ponho um biquíni, não é o que eu queria, aquele com estampa de oncinha; amarro um lenço no cabelo, me sinto feia. amarro outro lenço, continuo me sentindo feia. “tô feia” fala a voz da minha cabeça e minha boca reproduz. ele me olha e diz:

“tá linda meu amor”. como assim, amor? eu? seu amor?

arrumo a cama, varro o chão, como se fosse uma meditação. faz um tempo que parei de meditar, e acho que foi aí que me perdi de novo. o lenço solta da cabeça, tiro ele com raiva, jogo na cama. termino de limpar, é minha meditação também.

e como faço pra limpar meu corpo? minha mente? meu espírito? qual vassoura vocês indicam? qual produto? qual? alguém me ajude.

não quero surtar. não quero me estressar. não quero estourar, não quero que ele me veja em carne de demônio. não quero bater minha cabeça na parede, mas se pudesse pegava uma caneca e estourava no chão. gritava. decidi ir a praia. “quer ir a praia?” “vamos amor”. ainda continuo me achando feia. dormi bonita, acordei feia. e não há fala que mude isso. hoje é um dia que me sinto um lixo. e o que eu posso fazer pra mudar isso? não há biquíni fio dental, não há biquíni cortininha, não há lenço no cabelo.

há dismorfia corporal. há baixa auto estima. há sempre uma voz me gritando violências, inclusive quando estou de pernas abertas recebendo amor, há sempre um grito.

hoje eu só quero bater em mim pra não bater em ninguém. hoje eu só quero gritar. hoje eu só quero ter ódio por ontem ter achado que estava bem e ainda não ter despertado. por ver nomes que andavam lado a lado ao meu e assim como as vozes que gritam violências, me descartaram. gatilhos. agora todo mundo fala gatilhos. acho uma falta de respeito. você que usa a palavra gatilho de forma cômica, não queira ter TPB* e ser engatilhada. não queira ler e ouvir comédias sobre aquilo que te faz querer se cortar. se castigar. gatilhos. ainda dói todas as perdas, dói tanto que às vezes esqueço meus ganhos.

eu até me olhei no espelho ontem e me achei linda. muito bela. mas quando alguém me elogia eu não consigo acreditar. cachorra vira lata acostumada com migalhas, cega sempre desconfia quando a esmola é muita. e aí eu me pergunto,

você está preparada pra me ver pegar fogo? ainda assim você vai segurar minha mão quando ela estiver ardendo em chamas? você pode se queimar.

por isso na maioria das vezes eu tento ser minha própria calmaria. nas palavras. escrevo sem pensar, porque se pensar páro no meio do caminho, me encolho e choro. escrevo, sem vergonha, pois não estou roubando, matando, nem falando mal de ninguém. só de mim. e de meus monstros. você tem coragem pra enfrentar eles comigo? você tem sensibilidade suficiente pra não me largar no meio da avenida? um jovem negro surtou, saiu de casa pelado, andou kilômetros e se suicidou. ninguém parou ele. ninguém entendeu ele. mas todo mundo fala de gatilhos.

honestamente, não sei o que é mais letal pra mim. se é esse vírus, se sou eu mesma. acredito que sou eu mesma. e acredito que não vou morrer tão cedo, porque se fosse pra ser assim, já estaria morta muitos anos atrás. minha cabeça dói e não sei como curar. tenho prazos, trabalhos não pagos, coisas pra criar. e como fazer se minha mente não pára de me sabotar?

acho feio essa moda de gatilhos. mas quem se importa com o que eu penso. aprendi, há pouco tempo, que eu tenho que me entender, mais ninguém. se acontecer é bônus. senão, sigo em linha reta curvilínia pontilhada ateando e apagando fogo que eu mesma comecei. com meu próprio corpo. tenho muitas marcas, mas são invisíveis a olho nu.

* Transtorno de Personalidade Borderline é uma condição mental grave e complexa que centra-se na incapacidade de gerir emoções de forma eficaz. Os sintomas instáveis e pungentes invadem o indivíduo de modo súbito, caótico, avassalador e desenfreado. Os critérios diagnósticos de TPB compreendem um padrão de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem e dos afetos e de impulsividade acentuada.

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