cheiro de papel amassado

Dandara de Morais
3 min readNov 28, 2021

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06/02/1979

não sei se mainha me fez de papel crepom, laminado, filme, papel de presente, papel holográfico que mal pode ser tocado que se desfaz todinho; não sei se meu pai adicionou papel manteiga, papel ofício, cartolina, papel carbono, papel pautado, que tem outros fazeres de papel mas ainda assim são papels, e papéls são tão finos, servem pra gente se imprimir com lápis, hidrocor, amassado.

no meu amasso eu me vejo distante do mundo;

era 1999 (eu acho), já tinha virado o ano no quintal de vovó já falecida e que desde que tenho alguma memória nunca soube quem eu sou. às vezes ela lembrava quando meu pai me colocava na frente dela, sempre na cadeira de balanço, e dizia: “mamãe, lembra dela? é sua neta, dandara. minha filha” às vezes vovó sorria, as vezes fazia aquele movimento com os lábios e músculos depressores, retratores e orbiculares da boca. vó antônia tinha uma coleção linda de xícaras que ficavam num móvel azul daqueles antigos que eu sempre amei. e um quintal com um poço (brinquedo), muita terra (onde cavei uma piscina com meus comparsinhas), um bode (outro brinquedo), dois lôros (brinquedos também) e árvores que eu subia e descia sem parar.

vovó nasceu em recreio do angical, interior do piauí; assim como meu pai.

enfim, virado ano, eu sentada numa cadeira com meus primos e papi na beira do rio parnaíba quando vi um cachorro de rua. chorei escondida. até anotei num caderno que minha mãe deve guardar até hoje {sou ruim com guardar porque tenho mania de vergonha} a minha tristeza ao ver aquela cena. ninguém percebeu, e só sei que já tava chateada por ter entrado no carro com algum familiar que tinha bebido dirigindo.

o quintal

vinte oito de novembro de dois mil e vinte e um. recebo uma notícia de um incêndio causado por um ventilador que fez um estrago além do material. não aguento. eu vou pro inferno, eu não aguento notícia ruim, não aguento ver gente passando fome na rua, não aguento nada. inferno.

existe um mistério em torno do ventilador do meu quarto que quando acordei no sábado passado estava todo desmontado, meio estraçalhado e ninguém sabe o que aconteceu (meus motivos são: whisky + caipirinha + estômago vazio). foi pro conserto, voltou dizendo que tava saudável. não saí da cama ontem, percebi que ele parou de novo. cheiro de queimado. cheiro de queimado. substituí por um vento que me deu crise de rinite.

sonhei que eu tinha uma variação do corona vírus que dava na pele que na verdade é um babado que tá rolando em recife com a galera que usa cocaína e tinha um show e um jornal queria me entrevistar.

a notícia do incêndio. geralmente incêndio dentro de mim não me importo, mas incêndio nos outros já calejados que abalam o coração do meu bem e meu cérebro que já tá aqui afogado nas lágrimas que não saem me deixam doidinha. de certeza (?)

antes que queime, boto o dedo pra apagar. não posso acordar com cheiro de amor queimado. não posso dormir, não consigo dormir, até durmo mas só café me acorda. mas vontade de continuar acordada? não tá tendo.

papel? todo marcado

sem valor de mercado

espaço

espaço

s

25/04/1990 x 06/02/1694

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